Não me recordo da minha infância, as recordações que tenho são de cassetes que já não existem, são de sonhos que sonhava na cama dos meus pais. Agora o quarto está fechado e tenho medo de lá entrar. Quando era pequeno brincava com um miúdo asmático, era o meu melhor amigo e estávamos juntos uma a três vezes por ano. Ele chamava-se Pedro, não tinha mãe e o pai passava os dias com o portátil junto à piscina. Quando alguma solteira ou estrangeira se estendia por perto, ele sugeria que Pedro fosse andar de baloiço. Pedro não sabia nadar, nunca houvera aprendido. Foi no balancé que o conheci, era de madeira, o chão estava coberto de areia e agulhas dos pinheiros. Eu tinha medo de cair e ficar mal porque, ao descer, embatia com muita força. Todos os dias nos encontrávamos nos velhos baloiços já sem tinta, no balancé, junto à entrada do parque de campismo. Pedro tinha bombas de asma de todas as cores, guardava-as nos largos bolsos de ganga e parava demasiadas vezes para as enfiar na boca e bombear. Nunca lhe perguntei o porquê dos apetrechos, apenas compreendia sem compreender, como compreendia tudo o que não compreendia. Éramos muitos novos. Não me recordo de nenhuma conversa, de lhe perguntar alguma coisa, à excepção da matrícula do carro do pai. Era um carro longo, bonito e preto. Pedro era o meu melhor amigo e era asmático, estávamos juntos uma a três vezes por ano. Depois dos meus pais se separarem, guardei aquele número de matrícula durante largos meses, depois da última ida ao parque, do qual já esqueci o nome. Quando os meus pais se separaram, não voltei a acampar durante largos anos. Além de Pedro, dos parques de campismo que confundo como um só e de uma rapariga com quem fiz a promessa de casar, não me recordo da minha infância. As recordações que tenho são de traumas e infortúnios, são de sonhos que sonhei na cama dos meus pais, são de cassetes que perdi na intenção de não perder. Agora a minha voz está selada, os meus pais estão mortos, a cama tem lençóis de pó, o quarto está fechado, as cartas de amor estão arrumadas numa gaveta e a rapariga dos meus sonhos não se recorda do meu nome. Eu recordo-me do nome que nunca escrevi, de uma festa de anos onde os meus pais me levaram, onde demos um beijo de mãos dadas, quando disseste que me amavas e querias casar quando fossemos grandes. Foi a última vez que te vi, depois disso, só ouvi falar de ti. Não me recordo que idade tinha, talvez a minha mãe me soubesse dizer. Era demasiado novo para compreender a perda, e foi assim que aprendi a crescer depressa. Aprendi que depressa aprendo e que depressa esqueço quando não guardo. Aprendi que perco quando tento guardar e que depressa esqueço o que tento não esquecer de guardar. Aprendi, da pior maneira, à custa de tanto, que tão pouco guardo de nós. Aprendi que gosto sempre da última coisa e que desprezo sempre a penúltima, que, por vezes, as posições se invertem como papéis teatrais e sou obrigado a esquecer algo mais – a ser algo menos. Aprendi que não aprendo quando sou obrigado. Aprendi a criar hábitos, habituei-me a criar hábitos de modo a não cair no hábito. Depois habituei-me a mudá-los quando me apercebi o quão fácil é cair no hábito habitual. Aprendi a inverter o hábito. Como é fácil perceber quem somos quando connosco nos sentamos! Em breve o tempo vai mudar e levar estas raízes para um solo difícil de polinizar. A música daquelas mãos aguça-me o silêncio dentro de mim. E tu dizes que gosto de me dar a conhecer, pois eu digo que lhe gastava o nome sem revelar o meu.
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