sábado, 2 de maio de 2009

o tempo vai mudar

Não me recordo da minha infância, as recordações que tenho são de cassetes que já não existem, são de sonhos que sonhava na cama dos meus pais. Agora o quarto está fechado e tenho medo de lá entrar. Quando era pequeno brincava com um miúdo asmático, era o meu melhor amigo e estávamos juntos uma a três vezes por ano. Ele chamava-se Pedro, não tinha mãe e o pai passava os dias com o portátil junto à piscina. Quando alguma solteira ou estrangeira se estendia por perto, ele sugeria que Pedro fosse andar de baloiço. Pedro não sabia nadar, nunca houvera aprendido. Foi no balancé que o conheci, era de madeira, o chão estava coberto de areia e agulhas dos pinheiros. Eu tinha medo de cair e ficar mal porque, ao descer, embatia com muita força. Todos os dias nos encontrávamos nos velhos baloiços já sem tinta, no balancé, junto à entrada do parque de campismo. Pedro tinha bombas de asma de todas as cores, guardava-as nos largos bolsos de ganga e parava demasiadas vezes para as enfiar na boca e bombear. Nunca lhe perguntei o porquê dos apetrechos, apenas compreendia sem compreender, como compreendia tudo o que não compreendia. Éramos muitos novos. Não me recordo de nenhuma conversa, de lhe perguntar alguma coisa, à excepção da matrícula do carro do pai. Era um carro longo, bonito e preto. Pedro era o meu melhor amigo e era asmático, estávamos juntos uma a três vezes por ano. Depois dos meus pais se separarem, guardei aquele número de matrícula durante largos meses, depois da última ida ao parque, do qual já esqueci o nome. Quando os meus pais se separaram, não voltei a acampar durante largos anos. Além de Pedro, dos parques de campismo que confundo como um só e de uma rapariga com quem fiz a promessa de casar, não me recordo da minha infância. As recordações que tenho são de traumas e infortúnios, são de sonhos que sonhei na cama dos meus pais, são de cassetes que perdi na intenção de não perder. Agora a minha voz está selada, os meus pais estão mortos, a cama tem lençóis de pó, o quarto está fechado, as cartas de amor estão arrumadas numa gaveta e a rapariga dos meus sonhos não se recorda do meu nome. Eu recordo-me do nome que nunca escrevi, de uma festa de anos onde os meus pais me levaram, onde demos um beijo de mãos dadas, quando disseste que me amavas e querias casar quando fossemos grandes. Foi a última vez que te vi, depois disso, só ouvi falar de ti. Não me recordo que idade tinha, talvez a minha mãe me soubesse dizer. Era demasiado novo para compreender a perda, e foi assim que aprendi a crescer depressa. Aprendi que depressa aprendo e que depressa esqueço quando não guardo. Aprendi que perco quando tento guardar e que depressa esqueço o que tento não esquecer de guardar. Aprendi, da pior maneira, à custa de tanto, que tão pouco guardo de nós. Aprendi que gosto sempre da última coisa e que desprezo sempre a penúltima, que, por vezes, as posições se invertem como papéis teatrais e sou obrigado a esquecer algo mais – a ser algo menos. Aprendi que não aprendo quando sou obrigado. Aprendi a criar hábitos, habituei-me a criar hábitos de modo a não cair no hábito. Depois habituei-me a mudá-los quando me apercebi o quão fácil é cair no hábito habitual. Aprendi a inverter o hábito. Como é fácil perceber quem somos quando connosco nos sentamos! Em breve o tempo vai mudar e levar estas raízes para um solo difícil de polinizar. A música daquelas mãos aguça-me o silêncio dentro de mim. E tu dizes que gosto de me dar a conhecer, pois eu digo que lhe gastava o nome sem revelar o meu.

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