sábado, 16 de maio de 2009

Sede

Um beijo. Sonolento, arrebatado pela doçura, um beijo. O silencio. Não bebi sangue. Foi um beijo, atrever-me-ia a dizer um beijo como qualquer outro. Ao Sol, os corrimões amarelos e a vista da praia de Sesimbra. O azul. Ele estava perto da máquina de escrever. As cortinas de céu. Os lábios de homem, ásperos e com feridas. Os meus lábios de rapaz. O vermelho incandescente dos pés da escrivaninha, um incêndio. A ausência de sangue e a velhice eterna. O cheiro de sovacos. O fim das noites, de todas as noites desde então, gravado no meu rosto.

Fechar os olhos, a minha vida trata-se sobretudo de fechar os olhos dentro do meu armário. A sua pele encarquilhada, o seu corpo inclinado, débil, esvoaçante nas cortinas carcomidas, a pedir-me um beijo como aquele. Náusea. Nunca mais o beijarei. Ele cai, cai para sempre, e as escadas de madeira podre caiem com ele. Os olhos cerrados são o meu corpo todo. Observo nos espelhos. Os seus dedos já não tocavam piano. Incapazes de tocar piano. As pombas acumulam-se dentro da casa. Cortaram a luz. O ruído surdo das asas. A lentidão das penas.

Não haviam manchas vermelhas nos nossos lençóis. Não haviam manchas brancas também. Se ao menos pudéssemos. Velhice eterna.

Observo nos espelhos. O toque dos meninos e das meninas no meu pénis. A carne que morre quente. Observo nos espelhos. A neblina e ela salta, lá fora, eu estou dentro. O restaurante é quente por dentro. Outros dedos tocam piano. Lá fora. Desce o corpo esguio pela neblina na água negra da piscina. As mulheres que se sentam juntas à beira. Observo nos espelhos. A cave branca com música industrial, o ruído giratório dos patins. O corpo do rapazito. O silêncio no corpo do rapazito. O silêncio entre os instrumentos. O silêncio entrecortado da respiração. O azul. A humidade nas paredes da cave. O corpo esguio desce entre a neblina, em eternidades sucessivas. Os meus olhos afundam-se nas covas dos meus olhos. A minha vida trata-se sobretudo de fechar os olhos no interior do meu armário. Qual terei sido eu? Observo nos espelhos. Os meus olhos afundados nos meus olhos. Os meus olhos afundados nas covas dos meus olhos. Os meus dedos tocariam piano.

2 comentários: