segunda-feira, 16 de março de 2009

(A) vida ao pescoço

Oito e oito. Ela vestia a saia favorita sobre as leggins a condizer, um arco-íris de arredondadas pregas. Depois o top, acertando um acorde diminuto, quando ao agarrá-lo de cima do piano. Eu recuei da luz, entreabri uma pálpebra pesada. Ela ajeitava o cinto sobre a cintura. Um velho pescador fazia um nó de forca, enquanto me contava a história da sua família. O telefone tocou, recuei da luz. Ela atendeu, respondia timidamente, tentando ajeitar a aura sobre os loiros caracóis, outrora esticados. Era um daqueles dias, ela simplesmente não assentava. Recuei da luz, empurrei um pouco os lençóis. Estava calor. Ela desapertou o peito e por fim lançou a aura para cima do sofá. Voltou ao quarto, beijou-me e saiu. Até logo. O pescador era de uma ilha para lá da rota dos pássaros de metal, curiosamente, uma ilha repleta de maravilhas, vulcões e bandos do tamanho do céu, com as cores do arco-íris. Na minha casa nada me faltava, nem comida nem porrada, dizia ele, como eu era feliz antes de atracar no esgoto. Tentei-me apresentar, interrompeu-me. De olhos num balde escuro, contava-me de uma mulher que lhe contara os anos e os sonhos de uma vida desgastada. Essa mulher cuidara de um homem que não amava, sempre quisera ser enfermeira. Uma noite esse homem morreu, contava, e nessa noite ela me bateu à porta. Sabes o que fiz, perguntou antes de responder irritado, expulsei-a da minha ilha. Tenho oito filhos e vivo sozinho desde então, desde sempre. Ela escreveu-me durante anos, tentando justificar o contrário do que tentou justificar durante os anos anteriores, que ele não era a pessoa certa, que ele não podia sofrer um desgosto. Ele morreu à porta de casa, sufocado no próprio vómito tinto. Ela acusou-me, continuando, de não sentir o suficiente, de não sangrar o suficiente, de não morrer nos seus braços. Eu respondi-lhe que ambos tivéramos a nossa conta. Já tive a minha conta, disse-me, de olhos no balde, falta-me pagar. Bateram à porta. Desci as escadas a cambalear. Ninguém, apenas um rolo preto de sacos do lixo. Subi as escadas e parei ao reentrar na sala. A tua aura, entre escolhas descartadas de roupa menos arejada e colorida. A tua aura. Arranquei um saco do lixo. Abri-o. Um dia vais agradecer-me, pensei em voz alta.

inspired by: 'the noose' a perfect circle

1 comentário:

  1. Isto é material de altissima qualidade, meu amigo. Dos que li de ti, este é o que mais gosto. Dá vontade de ficar a estudar as várias camadas do sabor deste texto durante muito tempo.

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